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As relações entre Brasil e Argentina: futebol, preconceito e parceria estratégica

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Alessandro Candeas

Introdução: futebol, preconceito e parceria estratégica

Começo esta breve análise das relações Brasil-Argentina no campo do estereótipo mais óbvio, que detém forte poder simbólico: o futebol. A impressão da Argentina no imaginário brasileiro foi por longo tempo moldada por certo sadismo de locutores esportivos. Por outro lado, quando jogadores argentinos vêm atuar em nossos times, fenômeno recente, rapidamente viram ídolos. Na decisão da última Copa do Mundo, a maioria dos brasileiros torceu pela Alemanha, mesmo depois da fragorosa derrota que impôs à nossa seleção, embora muitos jovens, movidos pela solidariedade latina, tenham torcido pela Argentina. Nos últimos anos, o crescimento do turismo brasileiro em Buenos Aires e Bariloche deu à classe média uma visão muito mais rica, simpática e realista daquele país e sua população. Uma década antes disso, desde os primeiros anos do Mercosul, os empresários brasileiros já se haviam convencido da importância desse parceiro privilegiado do Brasil. Parte da imprensa brasileira, entretanto, persiste em uma postura de crítica contundente em relação ao Mercosul e especialmente à Argentina.

Que quero dizer com essas ilustrações? Que a impressão da Argentina é muitas vezes objeto de preconceito por quem a considera apenas superficialmente, mas de grande interesse e admiração por quem a conhece de perto ou tem relações profícuas com o maior parceiro estratégico do Brasil. A História e a geoeconomia nos ligam a esse país que produziu cinco prêmios-Nobel e um Papa.

E como o Brasil é visto na Argentina? Com respeito, interesse e pragmatismo. Pesquisas realizadas pela empresa Ipsos Mora y Araujo sobre a imagem do Brasil revelam que: i) o Brasil é visto como “grande mercado”, situado na mesma categoria que Estados Unidos, e não como “América Latina”; ii) a imagem do Brasil é mais favorável entre os que defendem um papel mais forte do Estado para a Argentina, mas também é muito favorável para os que favorecem o setor privado; iii) a imagem do país é mais favorável para os cidadãos argentinos mais competitivos, mas também é muito positiva para os de competitividade média e baixa; iv) a imagem do Brasil é mais favorável para os que têm imagem positiva dos Kirchner, mas também é alta para os que têm visão negativa dos últimos Presidentes argentinos. Tais resultados revelam que a visão positiva do Brasil é altamente majoritária em todo o quadro político-ideológico, e que não há impressão de concorrência com o trabalhador brasileiro.

A “Aliança Estratégica” Brasil-Argentina foi celebrada em 1997, no Rio de Janeiro, por ocasião da cúpula presidencial Menem-Cardoso, quando se firmou a “Declaração de Copacabana”. A construção dessa parceria iniciou-se, entretanto, na década anterior, no bojo dos movimentos de redemocratização dos anos 1980, após o pesadelo das ditaduras militares.

O objetivo deste artigo é tentar apresentar um panorama geral das relações bilaterais e dessa aliança estratégica. Sua ênfase são as tendências históricas estruturantes de longo prazo, e não as dificuldades conjunturais e setoriais alardeadas por alguns veículos de comunicação que, ao focalizarem a parte em detrimento do todo, transmitem à opinião pública uma impressão pessimista de uma relação que foi fundamental no passado e o será cada vez mais no futuro para o Brasil.

Uma visão histórica de longo prazo: relações erráticas ou estratégicas?

É comum afirmar que as relações Brasil-Argentina são erráticas. Contudo, uma visão objetiva de longo prazo demonstra que os laços bilaterais alcançaram desde a década de 1980 patamares superiores de estabilidade após dois séculos de desequilíbrios estruturais e conjunturais com alternância de períodos de rivalidade e cooperação.

A História destaca pelo menos dez momentos de aproximação entre o Brasil e a Argentina após a Batalha de Caseros (1852), que marca o fim da era Rosas e a consolidação institucional definitiva da Argentina como Estado:

• Tratado da Tríplice Aliança (1865);

• Tratado de Limites e visitas Presidenciais Roca-Salles (1898-1900);

• Visita do Presidente Sáenz Peña e construção da “cordial inteligência política”

articulada pelo Barão do Rio Branco, que conduziu ao “Tratado do ABC” (1910-

1915);

•Visitas dos Presidentes Vargas-Justo (1933 e 1935), acordos assinados e concertação em torno das iniciativas de paz (Guerra do Chaco, Pacto Anti-Bélico);

• Tentativa de reedição do “ABC” por Perón (1953);

• Acordos de Uruguaiana firmados por Jânio Quadros e Frondizi (1961);

• Acordo Tripartite (Itaipu e Corpus) e Acordos sobre Temas Nucleares (1979 e

1980);

• Acordos de Iguaçu entre Sarney e Alfonsín, o PICE e o Tratado de Integração

(1985-1988);

• Fundação e primeiros anos do Mercosul liderados pelos Presidentes Collor de

Mello, Fernando Henrique Cardoso e Carlos Menem (1991-1999); e

•Consolidação política, econômica e institucional da relação bilateral e do Mercosul liderada pelos Presidentes Lula e Dilma, Néstor e Cristina Kirchner (desde 2003).

As tentativas de aproximação bilateral perpassaram regimes tão diversos como os dos Presidentes Urquiza, Mitre, Roca, Sáenz Peña, Justo, Perón e Frondizi, mas tiveram pouca sustentabilidade até os anos 1970. Entretanto, no final dessa década, os esforços se intensificaram, passando igualmente por governos tão díspares como os de Videla, Alfonsín, Menem, De la Rúa, Duhalde e Kirchner (Néstor e Cristina). A partir da década de 1980, a estrutura do relacionamento alcança um patamar de cooperação, que se eleva em 1988 para o nível da integração. As oscilações na relação continuam ocorrendo, mas em um delta cada vez mais reduzido, não se verificando as bruscas variações e rupturas que marcaram os períodos anteriores.

É possível, portanto, afirmar que houve mudança na natureza do relacionamento bilateral. Os laços nasceram com uma carga de rivalidade herdada do período colonial, que imprimiu à relação uma instabilidade estrutural no século XIX, na qual a rivalidade predominou sobre a cooperação; ingressaram no século XX em uma longa fase de instabilidade conjuntural (de sete décadas) que oscilou entre rivalidade e cooperação; após o salto qualitativo alcançado com os acordos de Itaipu/Corpus e na área nuclear, ingressou, nos anos 1980, numa etapa de construção da estabilidade estrutural pela cooperação; e avança, no século XXI, na direção de uma estabilidade estrutural pela integração.

Nesse percurso, a diplomacia brasileira se orientou por atitudes de rivalidade estratégica durante a instabilidade estrutural (século XIX); de oscilação entre cordialidade e obstrução, durante a instabilidade conjuntural com cooperação e rivalidade (as seis primeiras décadas do século XX); de predomínio da obstrução e tática de fait accompli na década de 1970; e de cooperação aprofundada tendente à integração desde a década de 1980. A diplomacia brasileira se adaptou a cada etapa da relação: à instabilidade estrutural respondeu com rivalidade estratégica; à instabilidade conjuntural com cooperação ou com rivalidade respondeu com cordialidade, obstrução ou confronto retórico; promoveu a estabilidade estrutural pela cooperação com um inédito ativismo diplomático; e, hoje, busca construir a estabilidade estrutural pela integração com uma “diplomacia total”.

Em pouco mais de um século, a relação Brasil-Argentina vai do campo estratégico ao político e daí ao econômico-comercial e de infraestrutura, entrando no patamar superior da integração. O marco estratégico foi definido desde a Guerra do Paraguai; a dimensão política de concertação foi lançada pelo Barão do Rio Branco na primeira década do século XX (o “ABC”); os Presidentes Vargas e Justo agregaram, duas décadas depois, a dimensão comercial e de infraestrutura; em 1940, já se buscava estabelecer uma união aduaneira; nos anos 1950, Perón tenta reeditar o ABC; em 1961, o encontro Quadros-Frondizi em Uruguaiana define uma ampla agenda política e econômica. Até os anos 1970, as variações conjunturais político-estratégicas e econômicas eram bruscas e beiravam ao conflito e à ruptura; na década de 1980, passa- se da cooperação à integração, com uma agenda cada vez mais complexa e abrangente. As variações têm impacto mais reduzido na estrutura da relação.

Desde os anos 1980, a relação Brasil-Argentina se inscreve na categoria de política de Estado (e não “de governo”), integrando os interesses nacionais permanentes dos dois lados. Quaisquer que sejam as opções político-ideológicas das elites dirigentes de ambos os países, em contraste com as rupturas que possam haver entre os grupos que cheguem ao poder em outros campos dos programas de governo, a integração regional tem-se mantido como elemento de continuidade. Isso confere à relação bilateral um perfil estrutural – apesar das dificuldades conjunturais.

Como já dito, desde a década de 1990, o relacionamento revela, em alguns capítulos, a transição entre a mera cooperação e o nível mais avançado de integração. Em outras palavras, a relação bilateral mantém seu aspecto intergovernamental tradicional, mas avança na interação econômica comercial e produtiva, gerando compromissos que limitam a autonomia decisória clássica em benefício da integração entre mercados e sociedades.

Em síntese, a trajetória das relações Brasil-Argentina vai da rivalidade estratégica à integração, passando pelas etapas de cordialidade, obstrução e cooperação. Durante mais de um século e meio as adversidades neutralizaram os impulsos de aproximação. Os momentos de cooperação tiveram bases políticas e econômicas frágeis até a década de 1960, fazendo com que as forças de aproximação fossem vencidas pelos impulsos de afastamento. Somente a partir dos acordos de 1979-1980 inverte-se a tendência, as forças centrífugas passando a ser neutralizadas pelo fortalecimento dos laços bilaterais.

A diretriz de integração é evidenciada pelo fato de ter-se mantido e aprofundado nos últimos vinte anos ao longo de governos de perfil de centro-direita e centro- esquerda, populistas e ortodoxos, durante crises econômico-institucionais e momentos de reconstrução nacional, golpeada por períodos de hiperinflação, crescimento,

estagnação e depressão, bruscas variações cambiais e crises em mercados emergentes, contra os panos de fundo da Guerra Fria, do pós-Guerra Fria e da globalização. Se o interesse mútuo na integração não fosse poderoso e relativamente autônomo, o contínuo aprofundamento da relação bilateral não teria sobrevivido a tantas injunções e turbulências.

Desde a “crise e refundação” da Argentina (primeira década deste século), sua sociedade, diante de projetos opostos de país – o (neo)liberal proposto por Menem e o (neo)industrialista, protecionista e integracionista, defendido por Kirchner, sustentado pelo peronismo nacional-popular de centro-esquerda – aquele país fez a opção por este último, que implicava maior aproximação com o Brasil. A coincidência dos mandatos Lula-Kirchner aprofundou ainda mais a relação estratégica.

O eixo Brasília-Buenos Aires e o Mercosul

A arquitetura da diplomacia brasileira toma como base a geometria de círculos concêntricos. A partir do ponto central, que é o eixo Brasil-Argentina, construíram-se nas últimas três décadas redes e blocos de natureza geopolítica e econômica multipolar tendentes à integração: Mercosul, UNASUL, CELAC (América Latina e Caribe), ASA (América do Sul e África).

Como a soma dos recursos de poder de ambos os países representa cerca de dois terços do território, do PIB e da população da América do Sul, a convergência política e a abertura comercial ultrapassaram a dimensão bilateral e se irradiaram para o plano regional. Essa é a gênese do Mercosul e da UNASUL, que consolidam um espaço reconhecido como fonte de estabilidade estratégica na América do Sul e como interlocutores de peso nas negociações multilaterais.

Ao contrário de projetos que visam à mera agregação de mercados, o Mercosul é produto da convergência de uma comunidade histórica e de projetos culturais compartilhados. Até meados do século XX, o ideal de integração regional era hispano- americano, o que excluía o Brasil. Basta notar que o subtítulo de “La Patria Grande”, de Manuel Ugarte, é “Mi campaña hispanoamericana”.

A experiência de exílio de intelectuais brasileiros e latino-americanos nos anos

1960 e 1970 gerou, entretanto, uma tomada de consciência de uma latino-americanidade mais abrangente, incluindo o Brasil. Longe de suas pátrias, intelectuais de esquerda constataram a ampla convergência de condições políticas, econômicas e sociais do subdesenvolvimento e alentaram uma solidariedade voltada contra o imperialismo norte-americano e as estruturas de poder internacional. O prestígio dos intérpretes brasileiros da escola cepalina e desenvolvimentista contribuiu para a incorporação definitiva do Brasil no conceito de América Latina. Fernando Henrique Cardoso, Celso Furtado, Hélio Jaguaribe, Cândido Mendes e tantos outros são nomes de referência na construção da ideologia industrial-desenvolvimentista a partir de um pensamento estruturalista, nacionalista e valorizador do papel do Estado, que tinha como um de seus pilares a cooperação latino-americana e a construção de um núcleo de poder regional. Nos anos 1970, Celso Lafer, Félix Peña e Aldo Ferrer aprofundaram o estudo das similitudes da condição de dependência periférica e das possibilidades de desenvolvimento tanto endógeno como integrado. Entretanto, as teses da teoria da dependência sustentavam tanto a cooperação com o Brasil quanto a rivalidade, na medida em que a Argentina rejeita a condição de provedora de produtos agrícolas e importadora de bens manufaturados do Brasil.

Quando de seu lançamento, nos anos 1980, o impulso integracionista não obedece a uma necessidade econômica prévia, não cabendo aqui a lógica do determinismo econômico. Trata-se de uma decisão política que vislumbrava vantagens econômicas no futuro. Mesmo decisões de cunho econômico, como a importação de trigo e petróleo da Argentina, obedeciam a uma lógica política. A iniciativa não partiu de círculos empresariais, mas da cúpula diplomática de ambos os países. A transformação estrutural das relações não despertava maior interesse na opinião pública ou nos agentes econômicos, acostumados ao desconhecimento e ao histórico de desconfianças e rivalidades. Ainda não havia se formado uma “massa crítica” com mentalidade favorável à integração. Nesse momento, a diplomacia cumpriu seu papel de vislumbrar o horizonte futuro e mobilizar as instituições – com total apoio dos Presidentes dos dois países.

Brasil e Argentina vivem hoje as tensões da transição entre o padrão de comportamento regido pela cooperação intergoverna mental (com seu respectivo cálculo “egoísta” de custos e benefícios) e o início de um perfil mais profundo de interação entre as sociedades nacionais impulsionada pela integração no âmbito do Mercosul, com a construção de uma nova identidade regional. As tensões desse padrão híbrido de relacionamento certamente se prolongarão nas próximas décadas, com o aprofundamento do comportamento integracionista em alguns setores, com maior grau de institucionalidade, e a permanência de padrões clássicos de cooperação em outras áreas.

A integração é uma tendência de longo prazo, não-linear, com avanços e recuos que ocorrem em um diapasão cada vez mais reduzido. São impensáveis hoje as grandes oscilações e rupturas no relacionamento bilateral que se verificaram até a década de

1970. O fortalecimento estrutural do relacionamento bilateral neutraliza em poucas semanas ou meses quaisquer conjunturas centrífugas, trazendo de volta ao curso da normalidade os laços políticos e a prosperidade econômica.

A opinião pública argentina se inclinou à lógica do realismo periférico identificado por Carlos Escudé. Embora rejeite o método das “relações carnais”, assimilou seu verdadeiro objetivo: a razão da política externa deve ser o bem-estar material dos cidadãos. Nesse sentido, a diplomacia argentina tenderia a afirmar a identidade externa do país como “trading state”, em relativo detrimento dos desígnios antigos de grandeza, prestígio e poder. Estes últimos objetivos de política externa, evidentemente, continuarão norteando sua atuação, mas a sociedade argentina pode vir a optar cada vez mais, pragmaticamente, por uma diplomacia como instrumento de maximização de benefícios comerciais.

Em uma estrutura de globalização em blocos, o Mercosul tenderá a ter cada vez mais importância aos olhos da opinião pública para a consecução dessa diplomacia vista como diretriz de ganhos materiais. Isso explica o crescente apoio ao Mercosul na opinião pública, e sua quase unanimidade entre líderes.

A integração e a relação com o Brasil atendem aos interesses de alguns desses grupos, ao mesmo tempo que confronta outros. Por um lado, apoiam o Mercosul a “burguesia ganadera” exportadora de produtos agropecuários para o Brasil e que luta contra o protecionismo europeu e norte-americano, e a parcela mais competitiva do empresariado industrial, em particular a multinacional, que já se beneficia da conexão de cadeias produtivas e consegue colocar seus produtos no mercado brasileiro. Por outro lado, o empresariado de baixa competitividade rejeita a plena liberdade de trocas

comerciais no Mercosul e pleiteia um comércio administrado, com a aplicação de salvaguardas.

O projeto de integração substitui a lógica geopolítica, de confrontação, pela geoeconômica, de cooperação e complementaridade no Prata, impulsionando um projeto de desenvolvimento baseado em um mercado regional ampliado com densidade suficiente para firmar-se como pólo de estabilidade estratégica, política e econômica no plano hemisférico e no mundo.

A integração é o pressuposto da sustentabilidade política, estratégia, econômica (produtiva, comercial, financeira), sociocultural e de infraestrutura da nova etapa de desenvolvimento do Brasil e da Argentina em um mundo globalizado. A integração se insere no neodesenvolvimentismo do século XXI (vale destacar a proposta de um “regional-desenvolvimentismo” formulada pelo Embaixador Botafogo Gonçalves). Se a integração foi lançada na “década perdida”, em uma conjuntura de grande adversidade econômica, e aprofundada na “década neoliberal”, onde a ênfase recaía sobre a estabilização e abertura econômicas, hoje a integração é impulsionada pelo neo- desenvolvimentismo.

Por outro lado, a Argentina certamente não admitirá um “destino secundário” – um “furgón de cola de Brasil”. O desafio que se impõe é superar essa visão nacional- desenvolvimentista estreita e considerar um regional-desenvolvimentismo em escala mais ampla. Não há, hoje, na Argentina, nenhuma personalidade de prestígio ou grupo influente que se oponha ao aprofundamento da relação com o Brasil. Entretanto, o que se debate são as modalidades desse relacionamento e o grau de alinhamento ou autonomia argentina em relação ao Brasil e à chamada “brasildependencia”.

O capítulo econômico-comercial

A integração Brasil-Argentina vai muito além do tema comercial: seu objetivo é aprofundar a industrialização nos dois países e a construção de cadeias produtivas regionais. Bens de capital constituem quase 90 % do perfil de compras que a Argentina adquire do Brasil. Além da Argentina, há grande demanda potencial por produtos brasileiros dessas linhas em outros países da região, como Uruguai, Paraguai, Peru e Colômbia.

Nesse sentido, o comércio Brasil-Argentina é muito influenciado pela demanda industrial de bens finais e insumos. Quase a totalidade das exportações brasileiras para a Argentina é constituída de produtos manufaturados. Nenhum outro parceiro comercial do Brasil compra tantos produtos industriais de valor agregado (autopartes, aviões, combustíveis). Com ou sem crise no curto prazo, a Argentina continuará sendo o mercado industrial externo mais importante para o Brasil, e o Brasil, o principal mercado externo para as manufaturas argentinas. Isso é um dado estrutural que frequentemente não é levado em conta – nem divulgado – pelos críticos da integração, seja na imprensa, na academia ou nos circuitos políticos.

Após mais de uma década de expansão econômica e baixo desemprego, o modelo argentino de crescimento baseado no consumo interno apresenta sinais de fadiga. Indicadores recentes demonstram baixa atividade econômica, inflação, instabilidade cambial e falta de investimento, além de "default técnico" desde 2014. Como o país tem acesso limitado a fontes de financiamento internacional desde o "default" de 2001, depende de resultados positivos na balança comercial; entretanto, esta tem-se deteriorado, inclusive pelo menor crescimento brasileiro. Apesar disso, nos

últimos meses, a Argentina está em situação de relativo equilíbrio, talvez esperando que decisões de natureza mais estrutural sejam tomadas no futuro próximo, após as eleições deste ano.

Os resultados comerciais adversos e a baixa entrada de recursos externos têm forçado a Argentina a impor medidas de restrição às importações, o que prejudica exportadores brasileiros. No atual cenário de adversidades comerciais, a solução é seguir e aprofundar as regras do Mercosul, possibilitando um comércio efetivamente livre, sem barreiras não tarifárias e entraves. A recuperação e crescimento das exportações brasileiras para a Argentina dependerá da recuperação acentuada dos níveis de atividade econômica (consumo, produção industrial) nos dois países.

O Acordo Mercosul-União Europeia é de grande interesse para o Brasil. Em

2010, as negociações, paradas desde 2004, foram retomadas. No plano técnico, recente reunião de nível ministerial entre representantes dos dois blocos estabeleceu o objetivo de intercambiar ofertas negociadoras até o final deste ano. As ofertas dos dois lados já chegam perto de 90 % do comércio birregional, embora alguns produtos se beneficiem de anos de carência no cronograma de desgravação. As trocas negociadas são compostas, em sua grande maioria, por produtos manufaturados. Estão sendo negociados ajustes na oferta do Mercosul, o que exige negociação intensa entre os sócios do bloco. A Argentina tem tido maior dificuldade, em virtude de sua situação econômica e da pressão de produtores locais em alguns setores, em apresentar ofertas negociadoras. Essa circunstância gera críticas de protecionismo, que afeta fluxos comerciais e gera tensões comerciais com os vizinhos.

Medidas técnicas e administrativas argentinas têm dificultado exportações brasileiras em setores como têxteis, calçados, linha branca, alimentos (incluindo carnes), móveis, autopeças e máquinas agrícolas. Esses produtos sensíveis na relação comercial bilateral ocupam grande atenção da imprensa, embora tenham menor participação relativa no volume global de comércio entre os dois países.

Comentários finais

A parceria estratégica Brasil-Argentina continua sólida e permanente, a despeito da atual conjuntura negativa e, muitas vezes, de uma certa má vontade de alguns setores da imprensa e do meio político. Como assinalado no início deste artigo, cabe adotar uma visão de longo prazo, de construção político-estratégica, e não o horizonte da manchete do dia seguinte. O comércio e os investimentos bilaterais têm grande potencial de crescimento, uma vez superadas as atuais adversidades nos dois países.

O Mercosul pode se tornar o pólo dinâmico da América do Sul, com a irradiação de impulsos de desenvolvimento a partir do eixo Brasil-Argentina, com cadeias produtivas integradas em larga escala, intenso comércio e absorção de novas tecnologias. Essa conformação, nascida no Atlântico, pode gerar um corredor bioceânico de desenvolvimento em direção ao Pacífico.

A construção política da integração é resultado da inteligência política, que vai muito além da “paciência estratégica” de curto prazo, pois se orienta pela visão de longo prazo interessada no fortalecimento das bases sociais da integração. Inteligência política significa a tecnologia diplomática de busca não somente da antecipação e superação de eventuais desentendimentos e atritos, mas principalmente a criação de uma rede de interesses permanentes alicerçada nas respectivas sociedades nacionais – tanto nas elites e líderes de opinião quanto na população geral – que seja tão firme e abrangente de

modo que se torne imune aos eventuais desentendimentos comerciais e às oscilações conjunturais nos planos da política interna e da economia. A inteligência política tem como atributos cordialidade, empatia, sensibilidade aos códigos e significados culturais do país-sócio, conhecimento dos interesses nacionais do vizinho, correta percepção do momento político e econômico do mundo e do parceiro, busca permanente do consenso em áreas estratégicas. Inteligência política, como já identificara o Barão do Rio Branco há um século, deve ser a pedra de toque da relação Brasil-Argentina.

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