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Literatura e Política - Contra o Embrutecimento da Linguagem no Espaço Público

Palestra da sra. Husch Josten no Rio de Janeiro no dia 08/11/2019, premiada de literatura da KAS

Quais transformações estamos vivenciando na cultura do debate? De que maneira enfrentar o embrutecimento verbal? Como frear a radicalização e a polarização das sociedades por meio da linguagem? Como voltar a tornar objetivo o discurso público carregado de emoções? Essa e outras questões foram abordadas no dia 8 de novembro de 2019 na universidade Ibmec no Rio de Janeiro com cerca de 120 estudantes, alunos e pessoas interessadas em política. Aqui podem ler a palestra da sra. Husch Josten, laureada em junho de 2019 com o Prêmio de Literatura da Fundação Konrad Adenauer (para autores que escrevem em nome da liberdade).

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Contra o Embrutecimento da Linguagem - Palestra da sra baixar

Prezado Reitor, Professor Ferreira Lourenço,

Prezada Sra. Czymmeck,

Prezado Sr. Beloch,

Prezada Sra. Michaelles,

Mui estimada Sra. Darcy de Oliveira,

bom dia, meus prezados Senhoras e Senhores,

 

Como talvez tenham lido, eu sou de Colônia. Eu não sei se vocês conhecem Colônia? Ou a Catedral de Colônia. Isso, de pronto, seria o mais provável, porque nossa catedral é o a obra arquitetônica mais visitada do mundo.

 

Pelo menos é isso que dizem os responsáveis pela gestão do turismo de Colônia - e jamais alguém em Colônia questionaria seriamente essa afirmação.

 

Talvez isso seja muito similar aqui no Rio. De qualquer forma, tenho certeza de que o Pão de Açúcar também pode ostentar números de visitantes bastante impressionantes. E, certamente, o povo do Rio tem pelo menos tanto orgulho de seu morro local quanto nós da nossa catedral. Porque, claramente, em ambos os casos, trata-se de muito mais do que simplesmente de um pedaço de rocha e de uma peça de arquitetura.

 

Estamos falando de símbolos. O Pão de Açúcar e a Catedral significam algo. E eles significam, para muitas pessoas, muito diferentes, algo similar.

 

Ambas as coisas não são óbvias.

 

Pois, para que uma coisa se torne um símbolo, as pessoas precisam atribuir um significado a ela. É bem possível que a coisa em si já venha imbuída de significado. Assim como o Pão de Açúcar simplesmente lembra um bloco cônico de açúcar, enquanto a Catedral de Colônia, com todas suas espirais góticas ascendentes, tem como objetivo lembrar o reino dos céus. Sua função como ícone, no entanto, como símbolo de lar, por exemplo, não lhe é intrínseca por natureza. Este tipo de significado é atribuído. E isso: coletivamente.

 

Não sei se aqui no Rio também existem canções sobre o Pão de Açúcar. Em Colônia, há muitas músicas sobre a catedral. E muitos nativos de Colônia que há um bom tempo não visitam sua cidade natal, cantarolam uma dessas músicas quando algum dia retornam a ela. Alguns até sentem a necessidade de cair no choro diante de tanta saudade do lar. Esse é um fenômeno coletivo. Afeta tanto jovens como idosos, homens e mulheres, pobres e ricos.

 

Se imaginássemos, por um momento, que o Pão de Açúcar fosse desmatado ou a Catedral de Colônia recebesse uma mão de tinta amarelo-neon, descobriríamos rapidamente que o símbolo não funciona mais. A maioria das pessoas provavelmente precisaria continuar chorando, mas por outro motivo.

 

Pois teriam sido deprivadas não apenas de uma rocha ou de uma igreja, mas de um símbolo. Teriam tirado delas um pedaço de significado e com isso um pedaço de sua orientação no mundo, talvez até um pedaço de sua identidade.

 

Isso não é diferente, acredito eu, com o tema sobre o qual fui convidada a falar -  com a linguagem, com os nossos símbolos linguísticos, com a brutalização dessa linguagem no espaço público e com o que essa brutalização pode causar. Também na linguagem observamos nos dias de hoje que se desmata e se usa tintas amarelo-neon, às vezes dando até vontade de chorar.  

 

Mas aqui eu gostaria de fazer uma consideração prévia:

 

Para mim, não se trata apenas da sensibilidade especial que se pode e deve esperar de uma escritora ao falar desse tema.

Não se trata de dar voz a um pessimismo cultural por parte daqueles que apreciam e valorizam certas habilidades culturais e lamentam o seu desaparecimento.

Trata-se de muito mais – e bem que eu gostaria que a minha profissão, que simplesmente a linguagem bastasse para resolver tudo isso. Portanto, peço a sua compreensão para o fato de que, mesmo como nativa de Colônia (sim, nós também celebramos o Carnaval!) abordarei esse tema sem muito humor e, além disso, também de um jeito "bastante alemão".

 

Isso já tem a ver com a data da minha visita aqui hoje. Quem, como alemã, faz uma palestra em outro país pouco antes do dia 9 de novembro, não tem como deixar de lembrar essa assim-chamada "data fatídica" da história alemã:

 

Sobre o 9 de novembro de 1918: A revolução dos conselhos de trabalhadores e soldados, o fim da monarquia, o estabelecimento da primeira república democrática em solo alemão e o nascimento de uma lenda política, sem cuja força impositiva os próximos "dias do destino alemão" seriam impensáveis: A narrativa de direita da chamada "facada nas costas", por meio da qual os democratas teriam, por assim dizer, esfaqueado o exército alemão na frente doméstica e causado a derrota na guerra mundial.

 

Insuflados por essa narrativa, apenas cinco anos mais tarde, Adolf Hitler e o general Erich Ludendorff ousaram desferir seu golpe contra a República - em 9 de novembro de 1923.

 

Depois, outros quinze anos mais tarde: o 9 de novembro de 1938. A noite dos grandes pogroms na Alemanha, a devastação e profanação da vida judaica, um prenúncio do que viria a seguir e, novamente, um acompanhamento músico-linguístico, que só iria desaparecer 60 anos mais tarde  da trilha sonora oficial da República Federal Alemã: a "Noite de Cristais do Reich", um termo cunhado pelos seus perpetradores, que heroizava suas ações e que surpreendentemente sobreviveu aos  incendiários da época por um período surpreendentemente longo.

 

E finalmente: o 9 de novembro de 1989. A chamada "queda" do Muro, o fim da Guerra Fria e o início de uma nova era, cujas características igualmente perturbadoras só podemos – talvez - intuir nos dias de hoje, quando o lema da primeira revolução pacífica em solo alemão, de repente, assume uma conotação muito pouco pacífica: "Nós somos o povo".

 

De repente, "o povo" não é mais apenas o povo definido pela constituição, não é mais apenas a soma dos cidadãos, não é mais apenas o soberano democrático;

De repente "o povo" é novamente aquele grupo que compartilha a ascendência certa,  a mesma língua e a mesma retidão de intenções;

De repente torna-se novamente um "nós", ao qual muitos não deveriam pertencer, mesmo vivendo na segunda ou terceira geração no mesmo país; ao qual também não devem pertencer todos aqueles que supostamente dominam a opinião pública, pois, assim o bradam cidadãos enraivecidos e políticos de direita nos parlamentos: "Nós somos o povo".

 

"Nós" que nos indignamos,

"Nós", dizem eles, que nos colocamos no caminho para enfrentar a "ruína do Ocidente",

"Nós" que resistimos contra uma planejada "repovoação" e

"Nós", que consideramos a era fascista um mero "cocô de pássaro" (Alexander Gauland, AfD), ao qual não permitiremos ofuscar o brilho de nossa "história de mil anos".

 

"Nós somos o povo" - como isso deve soar hoje aos ouvidos daqueles que, trinta anos atrás na Alemanha, se auto-empoderaram em nome da democracia e do Estado de Direito? Uma catedral amarelo-neon, um Pão de Açúcar cinzento. Roubo de significado e identidade. Símbolos sequestrados.

 

É assim que começa? Essa é a pergunta que atormenta muitas pessoas na Alemanha de hoje. Elas sentem as lembranças voltando, enquanto nós, na verdade, já passamos muito daqueles primórdios...

 

Eu mesma conclui meus estudos de história há um bom tempo com um trabalho sobre o escritor Bernard von Brentano e seu livro "O início da barbárie na Alemanha". Esse texto foi publicado em 1932 - numa época em que muitos ainda acreditavam que Hitler e o Nacional-Socialismo acabariam se desmontando sozinhos. Brentano, por outro lado, cujo conceito de barbárie se referia inicialmente, sob a ótica do marxismo, ao capitalismo e suas consequências, e só em segundo lugar ao nazismo, foi um dos não tão poucos que viram a catástrofe se aproximando e não pouparam esforços no sentido de alertar contra a „ameaça da ruína“.  

 

Não serviu mesmo de nada. A voz de Brentano se esvaiu junto com a de outros posteriores emigrantes e vítimas do regime, incluindo, de forma chamativa, muitos escritores, poetas e jornalistas – pessoas, que na sua proximidade com a linguagem possuíam, ao mesmo tempo, algum tipo de sistema de alerta precoce para o potencial dos fatos e dos atos de agressão, que – mal – se escondiam atrás das palavras e expressões.

 

Ontem tive a oportunidade de falar na casa do grande Stefan Zweig em Petrópolis. Na casa de um pacifista inquebrantável, um escritor imbuído de profunda humanidade, uma pessoa expulsa de seu meio, que aqui encontrou um lar e defendeu a "unidade espiritual do mundo", lutando por ela, e que via sua missão na palavra, nunca na palavra de ordem, nunca no lema panfletário.

 

O que Brentano, a quem o escritor alemão e ganhador do Prêmio Nobel  Thomas Mann, por boas razões,  também apelidou de "gentil não-conformista", o que Stefan Zweig e os outros diriam hoje, se eles - e desta vez não apenas na Alemanha – lessem e ouvissem sobre ocupantes de cargos políticos que mandam prender seus opositores ou, diante de um público global que os assiste, se referem a eles como - citação - "babaca pomposo" (Donald Trump sobre Mitt Romney)?

O que eles diriam sobre políticos que pensam que "o grande erro da ditadura foi torturar e não matar" (Jair Bolsonaro 2016 no rádio)?

E o que dizer de pessoas que falam de "povos de culturas estranhas" e diante da desgraça dos refugiados no Mediterrâneo saem às ruas, gritando: "que se afoguem, que se afoguem"!

 

Tenho certeza: Também nesse caso veriam uma "barbárie" em ação, e certamente também classificariam essa barbárie como uma barbárie da linguagem. Mas com toda a certeza eles não considerariam a barbárie um problema genuinamente linguístico.

 

Eles não consideravam a língua dos bárbaros como seu adversário, mas os próprios bárbaros. E de maneira alguma eles pensariam que seria possível enfrentá-los por meio da linguagem. Eles gostariam de intervir mesmo não contra a brutalização da língua, mas contra a brutalização das circunstâncias. Eles apontariam para o início da barbárie, que há muito deixou para trás o domínio puramente da linguagem- se é que isso mesmo existe -  e tomou de assalto a própria vida, as sociedades e suas instituições:

 

  • O parlamento mais antigo do mundo, suspenso por um chefe de
  • governo não eleito;
  • Um sistema eleitoral que coloca no mais alto cargo político aquele que consegue, através da manipulação deliberada de uma opinião minoritária atrair para si uma presumida maioria dos votos – ainda que, na verdade, nem um quarto de todos os cidadãos e cidadãs tenham votado a favor dele;
  • O maior mercado interno do mundo, a Europa, que se permite ser dividido em questões-chave da humanidade, porque seus líderes políticos valorizam mais o receio de uma suposta perda de votos do que os valores fundamentais da comunidade pela qual são responsáveis;
  • O país mais populoso do mundo, que com a ajuda da inteligência artificial se prepara para substituir o direito humano universal à autodeterminação por um sistema de controle social absoluto e impiedoso;
  • O maior país da América do Sul, que, por razões econômicas, pratica a exploração predatória do meio ambiente, afetando não apenas suas próprias bases de subsistência, mas também as de toda a humanidade;
  • E, sim, também o meu país, onde pouco mais de 80 anos depois do 9 de novembro de 1938 torna-se novamente possível ameaçar uma comunidade judaica à mão armada e atirar em pessoas inocentes nas ruas - em nome de uma estratégia explícita de violência da direita.

 

Todos nós sabemos: Essa lista de barbaridades globais cotidianas está longe de ser completa. Eu poderia continuá-la, longa e assustadoramente, e precisaria mencionar igualmente o terrorismo internacional, bem como os crimes que foram e são cometidos em nome de combatê-lo; deveria mencionar também ataques, que bem podem ser considerados bárbaros, contra a nossa autodeterminação informacional;

Assim, deveríamos mencionar também a prisão e tortura de críticos do governo em países com os quais mantemos prósperas relações comerciais e dos quais somos aliados militares;

Também devemos lembrar que no mundo todo 42 bilionários acumularam tantas posses quanto a metade mais pobre da população mundial. [1]

 

Diante do pano de fundo de circunstâncias brutais tão generalizadas, qual é a importância ou falta de importância da questão da brutalização da linguagem? Realmente - mesmo e especialmente como escritora –, não tenho tanta certeza assim.  De repente isso me parece como se, ainda durante o naufrágio do Titanic, alguém demonstrasse interesse em saber se a orquestra de bordo, que bravamente continuava a tocar, estava acertando a nota correta.

 

Mas a linguagem não é um simples ornamento, não é um algo a mais que faz parte da vida e do qual , emergencialmente, podemos prescindir, não é música de acompanhamento. Ela é e continua sendo a mediadora do nosso pensamento e – mais importante ainda: a mediadora do nosso sentimento.

 

"A desvalorização verbal de membros individuais da sociedade é só o começo, e aí não leva muito tempo para alguém atravessar a rua e acertar o outro na cabeça, afinal não passam mesmo de vermes", foi assim que o poeta alemão Durs Grünbein falou há pouco mais de um ano, alertando contra o "rearmamento linguístico", contra o discurso de "meninas que usam lenço na cabeça, sujeitos armados de facas e outros imprestáveis", que até chegou aos parlamentos.

 

O mais tardar agora, depois do ocorrido na cidade alemã de Halle, onde há poucas semanas um extremista de direita pretendia causar um massacre entre os judeus reunidos na Sinagoga no feriado de Yom Kippur, e não conseguindo entrar, matou dois transeuntes a tiros, o mais tardar agora deveria ficar claro até para o último dos seres: Junto com a linguagem embrutecem também as emoções, especialmente a compaixão e com isso também os valores éticos e morais.

 

Assim, por exemplo, a fala sobre a „onda“ de refugiados: Quem, diante de uma onda dessas – e todo o mundo pensa logo em uma onda do tipo  tsunami e não em pequenas ondas rasas na fina areia - então quem, diante de uma onda dessas acharia moralmente defensável permitir a entrada das águas, talvez com o argumento de que depois ainda poderia ser desviada e a força da onda diminuída ao se quebrar em amplas praias?

E quanto maior é a estatura moral daqueles que exigem a construção ou o reforço de diques para servir como proteção confiável diante do desastre que se avizinha?

 

Mais recentemente passou-se a falar, em relação a esse tipo de situações, de "enquadramento" (framing), da evocação de contextos especiais, carregados de valor, através do uso de certas metáforas ou outras figuras de linguagem. Afinal, faz uma diferença moral se é o "barco" que está cheio ou o "navio", e assim  também na indústria automotiva, os responsáveis conseguem se safar muito mais facilmente quando no mundo o público fala do "escândalo do diesel" e não do "escândalo da fraude".

No entanto, essa "combinação de atos ilegais manipulativos cometidos por várias montadoras para contornar os limites legalmente estabelecidos para emissões de gases de exaustão e – em contrapartida – a influência política exercida para protegê-las"[2]  não passa de uma fraude.

 

Nesse caso, não é só o Pão de Açúcar que está sendo desmatado ou a catedral que está sendo pintada. Não são apenas os significados que estão sendo manipulados.

Aqui, a linguagem obscurece os fatos éticos e morais - e cria espaços para o que aparentemente é aceitável do ponto de vista moral, que ainda há pouco era considerado tabu. A fala "ainda vai se poder disso isso“ vira "ainda vai se poder fazer isso".

 

Assim, é importante saber que esse "acertar o outro na cabeça", do qual fala Grünbein, não é de maneira alguma perpetrado apenas e exclusivamente como consequência da brutalização da linguagem, isto é, como se fosse um ato fora da esfera linguística. É mais bem a própria linguagem, que ataca.

 

A filósofa alemã Petra Gehring fala do "poder físico da linguagem".[3] Com isso ela quer dizer: A linguagem não funciona apenas como a válvula em uma panela de pressão, que libera a pressão existente no caldeirão, independentemente da válvula. O que acontece, na realidade, é que emoções violentas são geradas justamente durante e a partir do ato da fala.

 

Quem já alguma vez observou as pessoas, que à luz lúgubre de suas tochas bradam o grito de guerra da "im-pren-sa men-ti-ro-sa" ou "Fora Merkel" em um refrão interminável, sabe o que Gehring quer dizer com o poder físico da linguagem. Nesses momentos da fala, não apenas verbaliza-se o ódio existente, mas também é trazido ao mundo um novo ódio através da linguagem.

 

E lá ele acerta aqueles ao qual se destina - os acerta com força física, uma força que pode até ser tornada mensurável e visível. Os neurocientistas sabem há muito que as vítimas do "discurso do ódio" respondem aos ataques verbais exatamente como respondem aos ataques físicos.

Em ambos os casos, o sistema nervoso libera as mesmas substâncias analgésicas - o proverbial "soco no estômago", que alguém desfere contra nós através da linguagem, é assim não apenas uma imagem lingüística, mas um fato neurológico.

 

Mas o que significa quando esses golpes não se limitam mais aos confrontos pessoais e privados, mas se transformam na trilha sonora contemporânea, o som que permeia a realidade geral? Se a sociedade fica presa a um clima de darwinismo linguístico, a um mundo de amigos e inimigos, ao preto ou ao branco?

 

Não apenas nos Estados Unidos a questão do apoio a Trump já está separando famílias inteiras e grupos de amigos. Também aqui, no Brasil, um psicoterapeuta recentemente relatou: "Se tudo o que é político de repente se estende até a vida privada, dificilmente alguém poderá fugir da pergunta de que lado está. No meu consultório, trato mulheres que se divorciaram após a eleição. Adolescentes que saíram de casa porque seus pais viraram estranhos para eles.“[4]

 

Tenho certeza: Além do sofrimento pessoal causado por essa situação de embrutecimento, a democracia também sofre. É um sistema de estado e de sociedade do meio. Mas quantas pessoas ainda podem viver tranquilas e em paz, quando a guerra impera a torto e a direito?

 

Inevitavelmente, é preciso pensar em Thomas Mann, na Montanha Mágica e "a grande irritação". O título de um dos últimos capítulos desse romance do fim dos tempos foi utilizado recentemente por um autor alemão de não ficção[5] como modelo para dar nome a seu próprio diagnóstico do tempo: Todos gritam uns com os outros, você não entende mais a sua própria fala, as portas ficam batendo e os destinados à morte levantam as armas carregadas em riste. O final é conhecido. Mas será que também nós - como Hans Castorp na Montanha Mágica – devemos nos perder no tumulto geral dos tempos, desaparecer deste mundo?

 

Eu não posso e não quero ver as coisas dessa maneira. No entanto, não posso e não quero acreditar que será justamente uma determinada maneira de disciplinar a linguagem a que vai nos salvar. Certas formas de disciplina de linguagem, ou melhor dizendo: Acredito que o disciplinamento da linguagem possa até provocar o contrário, são muitos os que se sentem excluídos diante de tantas filigranas, diante da ciência da língua, porque estão se tornando cada vez mais inseguros quanto ao uso da língua „que lhes é própria“ : O que é certo? O que se pode dizer, sem ser mal-entendido, sem ser mal-interpretado?

 

Não poucos dos que gritam contra a "imprensa mentirosa" o fazem exatamente por esse motivo: porque se sentem excluídos por tabus e dogmas da linguagem. De acordo com o lema: “Quem fala assim, com esse nós não falamos”. É preferível deixá-lo nos seus próprios espaços que funcionam como eco, nos quais afinal o ódio prospera.

 

Isso não fará o mundo se tornar melhor, a grande irritação se tornar menor e, portanto, o estado de brutalização se tornar mais suportável.

 

"Quem insiste na mudança da linguagem, deixou de se interessar pela mudança do mundo", escreveu o filósofo austríaco Robert Pfaller e não se pode concordar com ele o suficiente.

 

O que está em jogo não é a capacidade da  linguagem de avaliar, mas - bem no espírito de Hannah Arendt -  do aprender a julgar em si. Na capacidade de julgar de cada um de nós. Na sua capacidade de julgar. Não por acaso, a  filósofa da resistência Arendt, no final da vida, considerou o desenvolvimento do julgamento o mais político de todos os legados espirituais. "Sobre o julgamento" era o título da última folha inserida em sua máquina de escrever. Não é principalmente disso que se trata? De nossa busca incessante por „boas razões“ e de nosso uso delas, para poder e dever intervir contra a própria brutalização das circunstâncias; com as quais nos opomos às grosserias e imposições que nos pressionam por toda parte?

 

Como escritora, tento fazer isso de meu jeito. Usando a minha linguagem. Toda escrita tem como alvo a leitura - assim como a fala tem como alvo a escuta. Escrever é um processo social e - em geral – tem questões sociais por objeto: Falamos de pessoas que tentam – de uma maneira ou de outra – se relacionar: como amigos ou inimigos, como casais, como grupo, como sociedade. É aqui que, na minha opinião, residem as potencialidades da literatura, uma vez que:

Ela transmite experiências próprias e alheias. Ela é livre para fazê-lo e – na falta de liberdade- confronta a política com a liberdade da palavra.

Ela desperta a receptividade e aguça a sensibilidade para a vida e o sofrimento dos outros e para a nossa história.

Ela, como disse uma vez Bodo Kirchhoff [6], alivia nossa solidão e prova que não estamos sozinhos na dor ou na alegria (o que nos apequena um pouco). E que através dessa comunhão nos permite uma percepção mais fraterna (o que, por sua vez, nos engrandece).

 

Esse é o potencial da literatura, que o seu compatriota, o escritor brasileiro Luiz Ruffato, expressou tão bem e tão acertadamente na Feira do Livro em Frankfurt, seis anos atrás, quando disse:

 

"Explicar nossa singularidade é uma forma de resistência."

 

É uma ilusão acreditar que seja possível deter processos de brutalização por meio da arte ou da literatura?

 

Talvez essa seja uma ilusão essencial para a vida. De qualquer forma, uma coisa é certa: São sempre as artes as que são proibidas pelos que exercem o poder e detêm a força do embrutecimento, em primeiro lugar a literatura – em primeiro lugar autores como Stefan Zweig, cujos livros são queimados, cujas idéias pacifistas e visionárias parecem ser perigosas demais para o mesquinho espírito do ódio. Isso pelo menos nos deixa com a esperança de que o poder das palavras é muito maior do que a história nos narra.

 

Mas o lugar mais seguro para abrigar a resistência está, em primeiro lugar e principalmente, na atitude de cada ser humano, na sua maneira de ver o mundo – fazendo uso de sua capacidade de julgamento, como bem disse Hannah Arendt.

 

No terraço do restaurante de um hotel recentemente testemunhei uma conversa na mesa vizinha. Lá estão sentados: o pai e a mãe, ambos com trinta e poucos anos e as duas filhas, talvez de oito e quatro anos. Cada uma das crianças tem um bloco de desenho e vários lápis coloridos à sua frente, e eu posso ver que a filha mais velha parece estar desenhando o hotel, para cada quarto ela pinta uma janela e pergunta ao pai:

 

"20 quartos para um hotel - isso é grande o suficiente?"

Uma pergunta surpreendente para uma criança de oito anos, penso: "Grande o suficiente para quê?", alguém poderia perguntar, mas o pai sabe o que sua filha quer dizer e o que ela quer saber. De qualquer forma, ele responde:

 

“Depende do que custa cada quarto.” Deveria custar uma certa quantia para que o hotel pudesse ser economicamente viável. Imediatamente a filha quer saber o que exatamente é uma "certa quantia". E dá uma estimativa – tipicamente infantil:

 

"100 euros?".

"Não", diz o pai, "bem mais do que isso". Se por acaso ela sabe o que custa , por exemplo, o quarto em que estão hospedados. A pequena estima: "200"?

"Não!"

Então ela dá o chute decisivo:

"1.000?"

"Bem, não exatamente, mas quase!"

 

O pai ri e fica orgulhoso. A filha acaba de entrar em um mundo novo e volta para o seu desenho:

 

"Então 20 quartos são suficientes, certo?"

"Sim, caso você consiga alugar todos por esse preço."

"Bem, eles são quartos grandes. Tipo família. "

"É verdade, mas é melhor chamá-los de suítes."

"Como se escreve isso?"

 

O pai soletra, mas depois tem uma ideia melhor:

 

"Você também precisa de uma suíte presidencial".

"Por que isso?"

"Porque então as pessoas se sentem tão importantes quanto um presidente e ficam dispostas a pagar mais".

 

A filha entende imediatamente a jogada e diz:

 

"Bom, então vou fazer uma suíte real também, aí as pessoas vão pensar que são majestades e pagam ainda mais."

 

Mais uma vez, o pai ri cheio de orgulho, e eu estou impressionada. Impressionada com a rapidez com que a hospitalidade genuína e o interesse pelo outro rapidamente se deixam transformar em cálculos comerciais, com que facilidade os padrões mudam e as circunstâncias se brutalizam, o sentimento se corrompe.

 

Do ponto de vista da linguagem, está tudo em perfeita ordem no terraço do hotel, mas pensando na minha próxima palestra aqui diante deste público, eu tenho certeza: é assim que tudo começa. E uma frase vem à minha mente, do escritor austríaco Karl Kraus: "A cultura acaba, na medida em que os bárbaros dela irrompem“.[7]

 

Muito obrigada!

 

 

[1] https://www.welt.de/wirtschaft/article172684758/Oxfam-42-Milliardaere-besitzen-so-viel-wie-die-halbe-Welt.html

 

[2] Definição fonte: Wikipedia

 

[3] https://www.amazon.de/dp/B07K88W1NQ/ref=dp-kindle-redirect?_encoding=UTF8&btkr=1 e https://de.wikipedia.org/wiki/Petra_Gehring

 

[4] https://www.spiegel.de/plus/amazonas-braende-in-brasilien-jair-bolsonaro-ist-ein-perverser-a-f125ceb9-9451-4a32-80e9-a982e8f72444 

 

[5]Bernhard Pörksen. Ver: https://www.hanser-literaturverlage.de/buch/die-grosse-gereiztheit/978-3-446-25844-0/

 

[6] Bodo Kirchhoff, Frankfurter Poetikvorlesung, 1994/95: „Legenden um den eigenen Körper” (“Lendas sobre o próprio corpo”)
 

[7] https://www.tagesspiegel.de/berlin/zur-verrohung-der-politischen-sprache-die-verflachung-des-denkens-kann-gefaehrlich-werden/24160190.html

 

 

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