A isenção do IRPF - que vitória foi esta?
Humberto Dantas[i]
Na série histórica da dimensão legislativa do Índice de Governabilidade, calculado mensalmente pela consultoria 4i e objeto de capítulo de livro da KAS-Brasil, Lula III acumula o pior resultado desde 2003 para o indicador que compreende quanto a agenda do Planalto prospera no Congresso Nacional. A aferição toma por base a aprovação de medidas provisórias, que recebem pontuação igual a um quando aceitas integralmente; igual a meio quando emendadas pelo parlamento e; igual a zero quando rejeitadas ou vencidas. Numa média móvel de 12 meses que pode variar de 0 a 100, Lula não ultrapassou 25 pontos em sua atual gestão. Comparativamente, em seus primeiros mandatos a média superou 70 pontos. Mas com Dilma Rousseff reeleita foi a 33%, com Temer a 36%, Bolsonaro teve 27% e Lula III tem 17%, mostrando que desde 2015 as coisas não são “como antes”.
As hipóteses para tamanhas dificuldades se misturam: orçamento impositivo e variações do orçamento secreto; fraqueza de alguns presidentes perante o Congresso; dificuldade de Senado e Câmara se acertarem em torno dos ritos de tramitação das medidas provisórias; avanço de agendas a partir de trabalhosos projetos de lei; redução de força dos ministérios e seus atrativos; modernas formas de os parlamentares se comunicarem com o eleitorado; distâncias ideológicas entre Legislativo e Executivo etc. Em resumo: hoje o Executivo tem menos força diante do Legislativo.
Mas o que explicaria a aprovação de um projeto que reduz a incidência de imposto de renda sobre os ganhos dos brasileiros que recebem até R$ 5 mil? O que justificaria votação unânime na Câmara dos Deputados que rumou para o Senado, onde deve ser definida em novembro? Como pensar que o parlamento, tão resistente a Lula, lhe entregou promessa de Bolsonaro em 2018, que sequer atualizou a tabela do IRPF?
Dias antes da aprovação, o Congresso Nacional assistiu à tenebrosa tramitação da PEC da Blindagem ou “das Prerrogativas”, apelidada de PEC da Impunidade, na Câmara dos Deputados. O projeto foi ao Senado, e a Comissão de Constituição e Justiça, diante de atos populares realizados pelo Brasil que reascenderam, principalmente, a presença da esquerda nas ruas, votou unanimemente por seu arquivamento. O episódio descortinou crise de relacionamento entre os presidentes das casas parlamentares, e a justificativa mais ouvida para a derrota foi o clamor social. De carona nas críticas, um sonoro protesto contra a anistia aos criminosos que buscaram organizar Golpe de Estado no Brasil entre o fim do segundo turno das eleições de 2022 e o fatídico 08 de janeiro de 2023. O avanço do Projeto de Lei da Dosimetria, como ironicamente foi chamada a tentativa de se reduzir penas impostas pelo STF aos condenados, parece naufragar.
Assim, o que levou o projeto do Imposto de Renda ao Senado foi um conjunto de fatores. Por lá, uma contenda política alagoana terá que ser arrefecida. Enquanto Arthur Lira, ex-presidente da Câmara, relatou a medida que prosperou na Casa, no Senado a relatoria está com seu arqui-inimigo Renan Calheiros. Ambos podem ser candidatos às duas vagas no Senado em 2026. Para além disso, PT e PL justificaram de formas distintas a convergência em torno do projeto, que para muitos é símbolo de um Legislativo que próximo às eleições não tinha como contrariar a medida, sobretudo diante do desgaste popular. Para a direita, a matéria está associada à redução de impostos, e deveria ser compensada com austeridade fiscal. Para a esquerda, trata-se de justiça social, que deve ser ampliada com aumento de taxação aos ricos. A despeito das narrativas e dos embates contidos nas discussões, uma coisa é certa: a unanimidade aqui não parece burra, mas sim necessária – a despeito de tecnicamente a medida gerar debates entre especialistas.
Depois dos desentendimentos, a aproximação entre Lula e Trump
Miriam Gomes Saraiva[ii]
Há um relativo consenso de que, nos anos de 1990, as relações do Brasil com os Estados Unidos teriam sido “desdramatizadas”. O termo significava que seriam relações entre dois países soberanos e que haviam deixado de ser consideradas alinhamento ou enfrentamento. Com exceção dos primeiros anos no mandato de Jair Bolsonaro, até 2025 as relações entre os dois países ficaram fluidas. Mas no primeiro semestre de 2025, com o Donald Trump na presidência dos Estados Unidos, as relações se tornaram, no mínimo, dramáticas.
Ao chegar à presidência, Donald Trump adotou comportamentos desafiantes que trouxeram surpresa e impactos nas dimensões do multilateralismo, da segurança e do comércio internacional. O Brasil, por sua vez, com a presidência de Lula, segue uma política externa focada nas parcerias sul-sul e no grupo BRICS. Também busca contrabalançar levemente a presença internacional dos Estados Unidos. Internamente, o Brasil convive com processos judiciais contra Bolsonaro e outros réus que atuaram contra as instituições democráticas. Bolsonaro e, sobretudo, seu filho Eduardo Bolsonaro, são vinculados a atores políticos da extrema direita norte-americana, apoiadores de Trump.
Frente à influência de Eduardo Bolsonaro nos Estados Unidos e aos discursos de Lula na cúpula do BRICS, Trump decidiu sancionar o Brasil no campo comercial, com uma tarifa de importação de 40% acima dos outros 10% que já haviam sido instituídos. E, aparentemente, fechou as portas para conversas com representantes brasileiros. Ao declarar o aumento das tarifas, Trump acusou o Judiciário brasileiro de perseguir Bolsonaro. Implementou também sanções financeiras ao juiz relator do processo contra o ex-presidente.
A reação do governo de Lula foi defender a soberania e criticar as tarifas, mas evitando acusar o presidente Trump. Diplomaticamente, não tinha como ceder, mas seria bom deixar uma porta aberta para negociações futuras. Mas quando o tarifaço entrou em vigor, algumas brechas ficaram evidentes. Diversas exportações brasileiras foram consideradas exceções. Embora sem divulgação, a diplomacia brasileira e os agentes econômicos brasileiros e norte-americanos haviam começado a trabalhar para desmontar as sanções. Além das consequências negativas para a economia brasileira, o aumento de tarifas também teria impacto na economia norte-americana e nos preços de produtos muito consumidos no país. Empresas norte-americanas já sentiam o impacto.
A Assembleia Geral das Nações Unidas levou os dois presidentes a se encontrarem entre os discursos de um e de outro e, em sua fala, Trump indicou ter simpatizado com Lula. Para tanto, tiveram influência as negociações que já aconteciam sem o conhecimento público e a personalidade de Trump, que tem demonstrado afeição a governantes carismáticos que negociam através de relações pessoais diretas. Lula se enquadra nesta categoria.
Daí para a frente, os canais de negociação foram abertos e as diplomacias trabalharam para que os dois presidentes conversassem. A conversa teve lugar dias depois, por telefone, e ficou pendente um encontro presencial. Foi uma conversa amena em que Bolsonaro não foi mencionado, com os dois mostrando satisfação, o que indicou o início de negociações diplomáticas e comerciais para resolver o imbroglio. Ou seja, a questão de Bolsonaro saiu da agenda e os representantes dos dois países agora vão negociar.
É possível que essas tarifas sejam reduzidas e fique vigente apenas o correspondente às tarifas de 10%. Com a dramaticidade e anomalias à parte, pode-se afirmar que foi uma vitória do governo brasileiro e do próprio presidente Lula. Trump continuará com seu comportamento surpreendente e contrário ao multilateralismo, mas o governo brasileiro vem desmontando uma situação bastante incomum nas relações internacionais, em que um país parceiro e de boas relações diplomáticas decide punir com tarifas altas o outro por conta de um processo judicial contra um ex-presidente golpista.
Sociedade mobilizada contra retrocessos do Congresso
Guilherme France[iii]
Não é raro que o Congresso Nacional brasileiro busque caminhos para reduzir as chances e os impactos de eventual punição dos seus membros por desvios e irregularidades diversas. Muitos deles, assim como outras pautas corporativas, ganham aprovação rápida, sem chamar atenção da sociedade. As últimas semanas, entretanto, mostraram como a mobilização social ainda é capaz de frear retrocessos que prejudicam esforços de combate à corrupção no país.
O primeiro exemplo disso foi o fracasso da tentativa de aumentar o número de membros da Câmara dos Deputados. Este esforço consubstanciou-se numa solução criativa, mas inconsequente, para um problema real: há décadas, o número de deputados a que cada estado tem direito na Câmara permanece o mesmo, apesar de profundas mudanças demográficas. Com isso, estados que ganharam população ficaram sub-representados e vice-versa.
A partir de um cálculo destas mudanças na população de cada estado, chegou-se à conclusão que sete estados perderiam cadeiras, enquanto outros nove ganhariam. Para evitar que qualquer um perdesse, a Câmara aprovou um projeto que adicionava 18 cadeiras, levando o total de deputados para 531. Aprovado na Câmara com facilidade, no Senado, a pressão da sociedade contra um projeto que aumentava o custo do Congresso já se fez sentir. Em votação apertada, acabou recebendo a chancela de 41 senadores – exatamente o número mínimo de votos necessários. Com o crescimento da pressão contrária – pesquisas apontavam que 85% da população era contra o projeto –, o presidente Lula acabou vetando a proposta.
O segundo exemplo é a PEC da Blindagem, como ficou conhecida a proposta que instituía uma série de privilégios adicionais para parlamentares, o que, na prática, impediria investigações e processos criminais contra os próprios. Com a multiplicação de inquéritos sobre desvios com emendas parlamentares, tratava-se de impunidade garantida em tempos de grandes ameaças contra os seus interesses. Como as regras da Constituição Federal sobre o tema também se aplicam aos deputados estaduais, seria apenas questão de tempo até estes também se beneficiarem, com aumento consequente do risco de infiltração do crime organizado na política local.
A reação da sociedade após a aprovação da PEC na Câmara dos Deputados ganhou dimensões poucas vezes vistas na política nacional. Nas ruas e nas redes sociais, houve consenso raro entre esquerda e direita contra a proposta, que acabou rapidamente derrotada no Senado Federal.
Por fim, vale mencionar as ameaças contra a Lei da Ficha Limpa, que representa, até hoje, uma das maiores conquistas da sociedade civil brasileira. A partir da coleta de 1,6 milhões de assinaturas, o projeto de lei que institui longos períodos de inelegibilidade para pessoas condenadas por crimes de corrupção, entre outras hipóteses, foi aprovado no Congresso em 2009. Desde a sua instituição, foram muitas as tentativas de revogá-la, reduzir o seu escopo e alcance e até mesmo vê-la declarada inconstitucional.
A mais recente destas se materializou com o Projeto de Lei Complementar nº 192, de 2023, que pretendia reduzir os prazos de inelegibilidade, facilitando o retorno de políticos condenados às urnas. Aprovado na Câmara dos Deputados, o projeto enfrentou grande resistência no Senado, mas acabou aprovado no início de setembro.
Se a vitória da sociedade civil foi completa no que se referia à PEC da Blindagem, com relação à Lei da Ficha Limpa, o sucesso foi apenas parcial. Apesar das mais de 50 mil pessoas que assinaram uma petição online cobrando que o presidente Lula vetasse o PLC 192/2023, isso não aconteceu. Apesar de vetar alguns pontos específicos – considerados “cosméticos”, pelo Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral, organização da sociedade civil responsável pela coleta de assinatura nos anos 2000s que gerou a lei – o cerne do projeto foi sancionado e suas mudanças estariam, em tese, em vigor já para as eleições de 2026.
No entanto, a última palavra será, como tem sido sobre os temas mais polêmicos da política brasileira, do Supremo Tribunal Federal. A Rede Sustentabilidade, com apoio do MCCE, apresentou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade contestando diversos aspectos da Lei Complementar nº 219/2025. A ação contesta o processo legislativo que deu origem à norma. De fato, o Senado Federal mudou o texto legal, mas, ao apelidar estas mudanças como ‘emendas de redação’, evitou o seu retorno à Câmara dos Deputados, como preveem a Constituição e os Regimentos Internos de ambas as Casas do Congresso Nacional.
A ver como o Supremo responderá ao apelos da sociedade contra mais essa tentativa de retrocesso.
[i] Cientista político, doutor pela USP e parceiro da KAS.
[ii] Doutora em Ciência Política pela Universidad Complutense de Madrid, é Professora Titular do Departamento de Relações Internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
[iii] Advogado e Mestre em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro.