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Brasil em Foco

Série Brasil em Foco 4/2023

Tendências ideológicas e as perdas nas extremidades/ O Projeto de Lei nº 2630/2020/ As três chaves da relação Brasil-Rússia

Leia a nova edição da Série Brasil em Foco, com três artigos sobre os seguintes temas: extremismo, o Projeto de Lei das fake news e as relações entre Brasil e Rússia. A série Brasil em Foco tem por objetivo publicar mensalmente artigos com análises sobre os principais temas em pauta no cenário político, a fim de contribuir no debate democrático.

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Tendências ideológicas e as perdas nas extremidades

Humberto Dantas[1]

As últimas décadas nos sugerem que o mundo atravessou ciclos mais ou menos à esquerda ou à direita em termos ideológicos no que diz respeito a governos de diferentes países. Observar tal realidade à luz dos continentes nos faz compreender tendências. Os anos 90 do século passado, por exemplo, trouxe fenômeno associado à ideia de “terceira via” que indicava ser possível a formação de governos que não estivessem associados aos polos extremos do espectro ideológico. O fim da Guerra Fria inspirou tal realidade, simbolizada por Bill Clinton nos EUA, FHC no Brasil e Tony Blair na Inglaterra. Outros exemplos existem.

No continente sul-americano, o Brasil viveu estabilidade política entre 1992 e 2002 com os governos de Itamar Franco e FHC, e em seguida, de 2003 a 2013, com Lula e Dilma Rousseff. Mas a partir do período 2013-2016 se percebeu que um fenômeno de equilíbrio de forças e desgaste da política marcaria um país que atravessaria tempos de uma intensidade capaz de promover testes agudos às nossas instituições democráticas. Somar o impeachment de Dilma às intensidades de Bolsonaro, até o dia 08 de janeiro de 2023, é algo complexo. Assim, os últimos trinta anos da política brasileira foram marcados por 10 anos de estabilidade de centro-direita, 10 anos de estabilidade de centro-esquerda, e uma década mais recente de desafios agudos.

As jornadas de junho de 2013 marcaram a insatisfação de parcelas de brasileiros com a política. Pautas difusas, e o bordão #nãomerepresenta explicam parte do que atravessamos. Tal realidade somada à lógica de um antipetismo encorajou a direita, em parte liberal, mas sobretudo conservadora, a se fortalecer em movimento que, isoladamente, deve ser entendido como liberdade de posicionamento relevante à realidade democrática.

O desafio, no entanto, está em compreender os limites de tal atuação. Em recente fala nos EUA, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), afirmou que em 2026 as chances de a direita voltar ao poder são grandes, sobretudo se os erros de 2022 não forem repetidos. E que Bolsonaro, provavelmente inelegível por decisões jurídicas, teve como mérito desavergonhar o sentimento conservador da maioria dos brasileiros. Interessante.

Por que uma sociedade conservadora elegeu Lula? Que erros foram estes que Lira atribuiu à campanha de Bolsonaro? Isso pouco importa, mas se a previsão estiver correta teremos três ciclos ideológicos alternados entre esquerda e direita no país em 12 anos. O mesmo ocorre no Chile desde Piñera e Bachelet, por exemplo, bem como a partir de polos opostos a controlar a tentativa de diferentes processos constituintes no país. Ocorreu na Argentina, que ensaia devolver o poder à direita depois de retirar o liberal Macri e colocar em seu lugar a esquerda do decepcionante Fernández. Tudo isso de forma bastante rápida, sem persistência de tendências mais intensas como vivido há anos.

Tal fenômeno pode nos levar a distintas interpretações, mas uma delas merece atenção: as sociedades estão entregando à política um ritmo que não parece combinar com o que políticos e administração pública são capazes de entregar. Se a alternância de poder é absolutamente democrática e salutar, os câmbios permanentes, intensos e, principalmente, radicais, pode nos conduzir a perigosos espaços de negação que nos conduziriam à intolerância e à impaciência, duas palavras que não parecem combinar com o que entendemos como necessário à política e à democracia. Isso não significa dizer que Lula não possa ser substituído em 2027 por Bolsonaro, por exemplo, mas sim que as soluções extremadas não parecem edificar, mas apenas inverter lógicas em um perigoso jogo de soma zero – ou de resultado negativo no longo prazo.

 

O Projeto de Lei nº 2630/2020

Alexandre Veronese[2]

A desinformação mobilizou diversos países, nos últimos anos. Exemplos: a aprovação do Regulamento Serviços Digitais da União Europeia (UE) e da Netzwerkdurchsetzungsgesetz (NetzDG), da Alemanha. Esse movimento deriva, em parte, do descontentamento pela autorregulação própria. Há crescimento de demanda para regular aplicações. Ele se refere ao aumento da atuação estatal, seja de forma direta (regulação), seja de forma colaborativa (corregulação), seja de maneira delegada e supervisionada (autorregulação regulada). Todos os Estados, que tiveram capacidade, tentaram isso. O caso mais famoso dos Estados Unidos foi o julgado Reno v. ACLU, de 1997 (Suprema Corte). Ele declarou inconstitucional uma parte do Communications Decency Act (CDA) de 1996. Porém, ele reforçou a Seção 230 do Título 47 do direito federal. Essa norma, mantida, criou um regime de quase ausência de responsabilidade das plataformas por conteúdos de terceiros. A mesma lógica foi aplicada na Diretiva 2000/31/CE da UE. No Brasil, ela foi aplicada no art. 19 da Lei nº 12.965/2014. Atualmente, a evolução das aplicações tem levantado demandas por nova regulação.

O PL nº 2630/2020 tem origem no Senado Federal, no contexto do início da pandemia de COVID-19. Hoje, ele está na Câmara dos Deputados. Com os eventos de 8 de janeiro de 2023 (vandalismo político), o Projeto ganhou maior dimensão e se encontra em um turbilhão de divergências. Em síntese, ele se aplicaria às redes sociais, aos buscadores e às aplicações de mensagens. Mas, sua tramitação vem o expandindo para temas como diretos autorais e outros. No seu núcleo, ele demanda obrigações para provedores com quantidade grande de usuários. Um conjunto dessas obrigações é realizar aprimoramentos, aumentar transparência e receber auditorias. Há múltiplas outras obrigações; como sobre gestão de contas de usuários e mais. No campo da responsabilidade, o PL criaria dois meios de responsabilização das aplicações, em solidariedade aos produtores do conteúdo. O primeiro é a responsabilidade, quando houver danos e inação do provedor ao permitir a difusão de uma categoria restrita de conteúdo, de forma regular. A identificação do risco pode ser feita pelo provedor, por sistemas de revisão ou por denúncias. O segundo é um protocolo de segurança que pode ser acionado pelas autoridades e que enseja atuação preventiva. Ele cria sistemas procedimentais de moderação de conteúdo. Porém, não há como detalhar o Projeto, que cresceu muito. Várias polêmicas o rondam. Ele está em alteração constante e tramita em urgência.

Cabe perguntar: o que regular e quem regulará? Uma dificuldade sempre é decidir sobre determinados tipos de conteúdo. O CDA, nos Estados Unidos, não sobreviveu ao teste de constitucionalidade. Ele visava restringir “indecência”; isso é vago. O PL busca definir um rol claro sob o conceito de “dever de cuidado”. O desafio é enorme. E o regulador? Os provedores produzirão relatórios e ações. Quem analisará isso? Qual órgão sancionará? A Agência Nacional de Telecomunicações, um novo ente, ou o Poder Judiciário? Não está claro. Há muita polêmica na produção do PL. Ela continuará depois da sua eventual sanção e vigência. Nos Estados Unidos há o aguardar da decisão da Suprema Corte sobre os casos Gonzalez v. Google e Twitter v. Taamneh. A discussão é se existiria responsabilidade, no caso de impulsionamento, bem como se a falta de moderação de conteúdo terrorista a atrairia. No caso da UE e da Alemanha, há que aguardar a efetividade da regulação. Assim, tanto no exterior, quanto no Brasil, há processos em marcha, os quais deverão capturar atenção para questões de políticas públicas e de direito nos próximos anos, bem como definirão a Internet do futuro.

 

As três chaves da relação Brasil-Rússia

Marco Bastos[3]

No dia 15 de abril, o presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva estava em Beijing para uma visita de Estado ao imperador chinês Xi Jinping. Em uma entrevista[i], Lula criticou Estados Unidos e União Europeia por “incentivarem a guerra”. Nos dias posteriores Lula deu várias declarações que igualavam o agressor Rússia e a agredida Ucrânia. Depois, o chanceler russo Sergei Lavrov[ii] visitou Lula na residência presidencial em Brasília. Ao lado do Ministro das Relações Exteriores brasileiro Mauro Vieira, Lavrov disse que Brasil e Rússia “tinham a mesma visão” de mundo.

Três camadas explicam o comportamento de Lula e suas declarações sobre a Rússia-Ucrânia: 1) tradição diplomática brasileira de não alinhamento; 2) tentativa de ampliar o alcance diplomático brasileiro; 3) Ideologia e visões de mundo dele e de parte da esquerda brasileira.

 

1) Tradição diplomática de não alinhamento

A tradição diplomática do Brasil é de não-alinhamento desde a década de 1940. Poucos governos mudaram isso. O governo de Jair Bolsonaro (2019-2022) foi um deles, alinhando-se com Donald Trump e seu movimento reacionário.

Nos anos 1940, Getulio Vargas barganhou vantagens econômicas e equipamentos militares para lutar ao lado dos Aliados na Segunda Guerra Mundial. Nos anos 1990, Fernando Henrique Cardoso se engajou fortemente na diplomacia tanto com a América do Sul quanto com os Estados Unidos, em uma estratégia batizada de “independência na participação”.

Na maior parte da História, o Brasil tentou aumentar sua autonomia. Dada esta tradição diplomática, o Brasil não adota sanções unilaterais. Historicamente, segue sanções do Conselho de Segurança das Nações Unidas (ONU) e da Organização Mundial do Comércio (OMC).

O não-alinhamento e a necessidade econômica explicam a postura brasileira de não sancionar a Rússia, seguindo a postura de seus sócios fundadores dos BRICS - China, Índia e África do Sul. Matias Spektor[iii], um dos mais influentes pesquisadores de política externa brasileira, recentemente escreveu que esse é um comportamento racional de Estados emergentes e que eles não lembram com saudade da ordem unipolar liderada pelos EUA. Para eles, a ordem multipolar pode trazer mais vantagens.

O Brasil não se indispõe com a Rússia de olho também em sua relação com a China, que promete investimentos bilionários. Como disse o ex-Secretário do Tesouro americano Larry Summers, a China oferece um aeroporto, os Estados Unidos oferecem uma palestra.

 

2) Ideologia

Há várias camadas. Lula acredita que o governo americano fez um complô com o juiz da Lava Jato Sergio Moro para prendê-lo. Lula citou essa teoria da conspiração em entrevistas recentes. É um fato que a Agência Nacional de Segurança (NSA) espiou a então Presidente Dilma Rousseff e a maior empresa do país - Petrobras, o que não gera boa vontade entre os petistas com Washington DC.

Por mais pragmático que Lula seja (a sua formação é sindicalista - nunca foi um militante socialista ou comunista), ele é o líder de um partido de esquerda e muitas pessoas da esquerda brasileira são anti-americanas porque têm uma mentalidade de Guerra Fria e ainda culpam os Estados Unidos por apoiarem o golpe de Estado de 1964 e o regime que durou 21 anos.

O sociólogo Celso Rocha de Barros[iv], que tem um livro sobre a formação do Partido dos Trabalhadores (PT) nota que parte da esquerda tem a ideia de que a Rússia, na guerra, representa os países emergentes do Sul Global contra um aliado da OTAN. O site Brasil247[v], um portal de notícias que apoia o PT e o governo Lula, repetiu a propaganda oficial russa de “desnazificação” da Ucrânia.

 

3) Alcance diplomático

Em seus dois primeiros mandatos (2003-2009), Lula tentou expandir o alcance do Brasil. O país começou a participar dos BRICS e do G-20. O Brasil passou de 90 Embaixadas espalhadas pelo mundo a 129, incluindo Afeganistão e Coréia do Norte que fecharam por falta de condições de segurança. Lula e seu então chanceler Celso Amorim também tentaram negociar um acordo com o Irã em 2009 sobre o enriquecimento de urânio, mas fracassaram.

Agora, Lula quer desempenhar um papel na guerra, mas as declarações de Lula e do seu conselheiro Amorim foram um desastre para a opinião pública.

O jornalista Serguei Monin do Brasil de Fato, único veículo brasileiro que tem correspondente para a Rússia, contou a Dialogo Politico que nenhum jornal brasileiro tem correspondente na Rússia desde 2018, o que reforça as visões de mundo trazidas pela mídia ocidental. Um diplomata brasileiro aposentado observou que a mídia brasileira olha muito para o Ocidente e que era fácil prever que a percepção seria que o Brasil estava se alinhando a Rússia.

 

Minha análise

Lula e Amorim podem querer que o Brasil seja mediador da guerra, mas a operação foi um desastre de relações públicas. Ademais, há um desperdício de recursos e de energia. O Brasil não tem capacidade material para mediar nada no Leste Europeu. Quantos especialistas em Rússia e Ucrânia há no corpo diplomático? O Brasil deveria concentrar a sua energia diplomática na América do Sul e nas alterações climáticas - questões em que é fundamental.

Sobre a visão de parte da esquerda brasileira que apoia a invasão russa, é irônico pois Putin é o líder de um regime militar personalista, anti-liberal e financiado por oligarcas. Chamávamos a isso fascismo nos anos 20 do século passado. Lula chama Bolsonaro de fascista. De fato, tanto a esquerda latino-americana como a extrema-direita ocidental veneram Putin. A esquerda olha para Putin e vê resistência aos EUA. A extrema-direita olha para o discurso de superioridade da Nação e da etnia russa.

Se não fosse pelo apoio de americanos e europeus, provavelmente Bolsonaro teria conseguido dar o golpe de estado que desejava. Um risco para a diplomacia de Lula é não conseguir organizar tantos elementos ao mesmo tempo.

 

[1] Cientista político, doutor pela USP e parceiro da KAS.

[2] Professor Associado da Universidade de Brasília, Faculdade de Direito.

[3] Analista político e consultor de campanha eleitoral com foco na América Latina. Mestre em História Econômica pela Universidade de Buenos Aires. Analista da Southern Pulse.

 

[i] https://www.dw.com/pt-br/lula-diz-que-eua-precisam-parar-de-incentivar-guerra/a-65335431

[ii] https://www.dw.com/pt-002/lavrov-em-bras%C3%ADlia-brasil-contra-san%C3%A7%C3%B5es-%C3%A0-r%C3%BAssia/a-65352676

[iii] https://www.foreignaffairs.com/world/global-south-defense-fence-sitters

[iv] https://www1.folha.uol.com.br/colunas/celso-rocha-de-barros/

[v] https://medium.com/@DeFacto_LatAm/la-izquierda-brasile%C3%B1a-defini%C3%B3-la-agenda-noticiosa-en-la-visita-de-lavrov-3dec3ab9e7b8

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