Sobre IOF, narrativas e papeis trocados
Humberto Dantas[i]
Ganha força nas percepções sobre a política que o mundo atual e suas causas e temáticas se converteu num universo de conflitos de narrativas. Com o advento das redes sociais e das atuais formas de comunicação, discursos eloquentes empacotados, inclusive sob falsas verdades, constroem a realidade. Adiciona-se a isso, provavelmente como consequência direta dos desdobramentos das guerras de narrativas, a cristalização da polarização política. Nesse sentido, cada lado estaria se armando de percepções fantasiosas e poderosas para enrijecer posturas.
É diante dessa realidade que se constrói parte do debate Acerca do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF). De um lado um governo com viés de esquerda investindo na narrativa de justiça social e na luta entre ricos x pobres, com os olhos nas eleições de 2026. Aqui, a justificativa de elevação está associada ao fato de que os operadores de recursos podem pagar mais. De outro lado, uma oposição renhida que tem dificultado a agenda do Executivo no Legislativo, e neste caso alega que no Brasil se paga muito imposto, e elevações dessa natureza são ruins para o povo e para os negócios.
A despeito de tal conflito, o país parece demandar três reformas para obter equilíbrio econômico nas contas federais: Tributária, Fiscal e Administrativa. Todas tramitam ou estão em fase de regulação. A primeira foi aprovada, vai demorar a funcionar, simplificou e racionalizou impostos, mas não os reduziu. Assim, demandas por recursos para investimentos e compromissos sociais ficariam a cargo de transformação Fiscal, que depende de austeridade e mudanças Administrativas, sobretudo associada à remuneração dos servidores. Todo esse combinado de elementos é complexo e não está associado apenas a privilégios de setores econômicos ou do funcionalismo, carregando propostas que tramitam faz anos no Congresso Nacional.
O ponto central do IOF é que ele expõe conflitos entre os três poderes que têm se tornado tradicionais no Brasil, e inverte a posição dos atores políticos, o que gera narrativas ocasionais. Em 2021, por exemplo, Jair Bolsonaro editou decreto elevando temporariamente, de setembro a dezembro, a alíquota do IOF com a justificativa de pagar o Auxílio Brasil – antigo e atual Bolsa Família – em tempos de pandemia. O PSB (Partido Socialista Brasileiro), hoje na vice-presidência da República, entrou com ação no STF alegando que o decreto feria princípios da legalidade tributária com fins arrecadatórios. O julgamento ultrapassou o governo anterior e constrói-se maioria em 2024 com ganho ao Poder Executivo, restando, no entanto, a conclusão para a aplicabilidade do caso.
A despeito de seu desfecho, seguindo acordo no âmbito da OCDE, em 2023 Lula assina decreto reduzindo gradualmente a alíquota do IOF, e em seguida volta atrás em algumas de suas decisões. Em meio a crises com o Congresso associadas ao equilíbrio fiscal, em 2025 o governo edita novo decreto e eleva as alíquotas do IOF, voltando atrás em algumas delas.
O Congresso, de oposição, contra-ataca com uma determinação legislativa e faz o governo retroceder. Alega, mesmo contrariando a decisão do STF de 2021 que ainda não está concluída, que o instrumento unilateral Decreto não combina com a necessidade de medidas desse tipo tramitarem pelo Legislativo. Novamente o STF é acionado, dessa vez pelo Executivo, e temporariamente o decreto presidencial passa a ter valor. O Legislativo se diz ultrajado, o Judiciário parece caminhar no sentido de sua tese inicial, ainda não finalizada, de que o Executivo tem o poder de editar tais matérias, e as narrativas seguem caracterizando atores que mudam de posição a depender da ocasião. Quem defende quem nesse país? A ocasião... E quem pode o quê? Isso vai depender do STF, que novamente será tratado, sob a lógica das narrativas, como ator político.
A crise climática e a encruzilhada da transição justa: que futuro o Brasil quer?
André Castro Santos[ii]
A exploração de petróleo na Margem Equatorial, especialmente na bacia da foz do Amazonas, expõe o Brasil a uma encruzilhada e tentativa de conciliação entre diferentes alternativas de futuro. De um lado, a promessa de recursos e desenvolvimento; de outro, a ameaça concreta a ecossistemas sensíveis, populações costeiras e à credibilidade climática do país às vésperas da COP 30.
O projeto da Petrobras prevê a perfuração de até 16 poços exploratórios ao longo de 2.200 km de costa, do Amapá ao Rio Grande do Norte. A área em questão é altamente sensível do ponto de vista socioambiental. Desde 2016, o próprio governo federal dispõe de um atlas que identifica a região como extremamente vulnerável a derramamentos de óleo: manguezais, florestas de várzea e praias são ambientes de altíssima sensibilidade e de difícil limpeza. Ainda assim, faltam estudos que aprofundem o conhecimento sobre a biodiversidade local — o que torna qualquer decisão sobre exploração muito arriscada.
Aprovado recentemente pelo Ibama, o plano de emergência da Petrobras pode ter atendido aos requisitos técnicos mínimos, mas isso não encerra o debate. A mera existência de um plano não elimina os riscos — especialmente em uma região que carece de estrutura para responder a grandes desastres e onde as condições oceânicas são adversas.
As comunidades da região não vivem de alimentos processados, mas principalmente da pesca diária, da água limpa e da relação direta com os ecossistemas locais. Um acidente com derramamento de óleo comprometeria imediatamente a segurança alimentar, a saúde e os modos de vida dessas populações. Em contextos como esse, o mínimo que se espera é acesso transparente à informação, consulta adequada e participação efetiva nas decisões. No entanto, o que se observa é a reprodução de um modelo de desenvolvimento que ainda pouco dialoga com os territórios mais afetados — e que precisa evoluir para colocar essas populações no centro das escolhas.
No entanto, o avanço do licenciamento ambiental para exploração na área levanta uma reflexão importante que o Brasil precisará enfrentar com responsabilidade: como conciliar o papel de liderança na COP 30, em pleno coração da Amazônia, com decisões que envolvem atividades de alto impacto em regiões ambientalmente sensíveis? Manter a coerência entre discurso e prática não é apenas uma aspiração diplomática — é uma oportunidade de reforçar a credibilidade do país e sua capacidade de liderar pelo exemplo.
É verdade que o Brasil, como país em desenvolvimento, tem o direito de reduzir suas emissões em ritmo diferente dos países industrializados e de priorizar a erradicação da pobreza. Mas esse direito deve ser exercido de forma compatível com a transição justa que o próprio país defende no cenário internacional. Caso o governo insista em abrir novas áreas de exploração, o que se deve exigir, de forma inegociável, é a garantia de que cada centavo do recurso obtido seja integralmente revertido para a transição energética, com a elaboração de um plano robusto e executável, com investimentos em energias renováveis, geração de empregos verdes, desenvolvimento regional e combate à fome.
Ainda assim, é fundamental reconhecer que há limites que não deveriam ser ultrapassados. Explorar petróleo em regiões como a foz do Amazonas — com ecossistemas únicos e alta vulnerabilidade socioambiental — precisa ser visto como uma última alternativa, jamais como uma escolha trivial. Avançar nessa direção exige não apenas justificativas técnicas, mas também clareza sobre o legado que queremos construir: um país capaz de promover desenvolvimento com justiça climática e responsabilidade intergeracional.
As tarifas impostas por Trump ao Brasil
Leandro Gavião[iii]
Em 9 de julho, o presidente norte-americano Donald Trump anunciou a imposição de tarifas de 50% sobre todas as exportações brasileiras aos Estados Unidos, com vigência a partir de 1º de agosto. A medida, formalizada por carta pessoal endereçada ao presidente Lula da Silva, surpreendeu analistas e agentes de mercado, sendo amplamente interpretada como um gesto desproporcional.
O texto extrapolou o campo econômico e mergulhou em temas sensíveis da política doméstica. Referências ao ex-presidente Jair Bolsonaro, críticas ao Supremo Tribunal Federal e ataques velados à regulação das plataformas digitais evidenciaram que a decisão ultrapassava os limites do comércio internacional e assumia contornos ideológicos. A narrativa empregada por Trump sugere uma tentativa deliberada de interferência em um contexto de tensão entre os poderes da República.
Atribuir às tarifas a defesa de princípios democráticos é, no mínimo, um gesto de ingenuidade analítica. Se esse fosse o critério, aliados estratégicos dos Estados Unidos, como a Arábia Saudita — uma monarquia absolutista — estariam sujeitos a sanções mais severas. A seletividade das medidas revela, em última instância, a já discutida instrumentalização retórica dos valores democráticos por parte das grandes potências. Autores como Immanuel Wallerstein, István Mészáros e Moniz Bandeira demonstram como princípios como democracia e direitos humanos são frequentemente mobilizados de forma seletiva para legitimar intervenções ou coerções conforme interesses estratégicos. Trata-se de uma lógica que aparenta coerência normativa, mas que, em sua materialidade política, opera por critérios de conveniência, convertendo o discurso democrático em instrumento de poder simbólico, tal como formulado por Pierre Bourdieu — uma forma de dominação que se impõe como legítima por sua aparência de neutralidade.
Outro argumento apresentado por Trump refere-se às supostas barreiras comerciais — tarifárias e não tarifárias — impostas pelo Brasil, que teriam gerado um desequilíbrio estrutural nas trocas bilaterais. Contudo, dados do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços contradizem essa afirmação: nos últimos dez anos, os Estados Unidos acumularam um superávit de aproximadamente US$ 43 bilhões na balança comercial com o Brasil. Trata-se, portanto, de uma justificativa sem fundamento empírico, típica da era da pós-verdade — como definiu Matthew D’Ancona —, em que fatos objetivos cedem lugar à manipulação emocional.
A verdade incômoda, muitas vezes omitida nos discursos oficiais, é que os BRICS, especialmente após sua ampliação em 2024, passaram a ser percebidos como uma ameaça aos pilares da ordem liberal ocidental. A agenda do grupo — que inclui mecanismos financeiros alternativos, comércio em moedas nacionais e o questionamento da centralidade do dólar — vem gerando inquietação nos setores mais nacionalistas da política norte-americana. Esse desconforto tem alimentado uma série de narrativas conspiratórias, especialmente nos círculos trumpistas. No caso brasileiro, ele se intensifica diante de sua peculiaridade: um país simultaneamente ocidental, latino-americano e membro de um bloco revisionista — condição que o transforma, aos olhos de Washington, num elo dissonante a ser disciplinado. A retaliação, nesse sentido, deve ser compreendida menos como resposta técnica a uma distorção comercial e mais como uma encenação diplomática de contenção a iniciativas que desafiem a primazia americana.
A imposição das tarifas também deve ser compreendida à luz da desestruturação da arquitetura multilateral erguida após a Segunda Guerra Mundial, da qual os Estados Unidos foram protagonistas ao instituírem organismos como a ONU, o FMI e o GATT/OMC. Esse arranjo visava disciplinar as relações interestatais por meio de regras e previsibilidade. Jean-Baptiste Duroselle costumava dizer que o estrangeiro é sempre um “fator aleatório”, razão pela qual o direito internacional e os canais multilaterais são essenciais para evitar ruídos e conter a lógica da coerção.
Esse episódio das tarifas parece ilustrar uma tendência mais grave e profunda: a erosão do multilateralismo. A política externa de Trump privilegia gestos unilaterais e despreza compromissos coletivos. Nesse cenário, pequenas e médias potências tornam-se especialmente vulneráveis a imposições voluntaristas. Embora as organizações internacionais apresentem falhas e assimetrias, é inegável que oferecem mecanismos de contenção ao arbítrio dos poderosos. Ao renunciar à previsibilidade das regras, o sistema internacional regride à gramática da força, e nela Estados mais fracos voltam a negociar apenas o lugar de sua submissão.
[i] Cientista político, doutor pela USP e parceiro da KAS.
[ii] Diretor técnico da LACLIMA. Doutor pelo programa de alterações climáticas e políticas de desenvolvimento sustentável (Universidade de Lisboa) e em direito ambiental (Universidade de São Paulo)
[iii] É professor na Universidade Católica de Petrópolis (UCP), pós-doutorado em História (UFRJ) e coordenador do Núcleo de Estudos Internacionais Brasil-Argentina (NEIBA-UERJ).