Lula III e os desafios da governabilidade
Humberto Dantas – cientista político
Em 2019 a KAS Brasil lançou livro sobre Governabilidade no Brasil. No plano federal, o fenômeno enfatizado transcendia a dimensão concentrada na relação Executivo-Legislativo. Governabilidade seria um exercício complexo de o Planalto coordenar diferentes atores, sendo os mais relevantes: o Congresso Nacional, incluindo os partidos políticos, o Judiciário e a opinião pública, compreendida como a mídia tradicional, as redes sociais e a percepção geral da sociedade.
A preocupação era entender como Bolsonaro, eleito em 2018 com críticas aos partidos e ao parlamento, governaria. O que se viu adiante foram tentativas de conter dificuldades legislativas por meio da distribuição opaca de emendas do relator, chamadas de orçamento secreto. Isso pode ter evitado conflitos que levassem a um impeachment, mas não deixou de marcar Bolsonaro como aquele que mais teve vetos derrubados no Legislativo, por exemplo.
Ademais, o presidente enfrentaria resistência em suas relações com o STF, que buscou conter em ameaças que colocaram enfraqueceram a democracia. Por fim, em relação à opinião pública, médias móveis de seis pesquisas realizadas por nove institutos, durante todo o governo, mostraram resistências. Ao todo foram 261 pesquisas, e nunca Bolsonaro teve mais de 40% de avaliações boas ou ótimas na média de seis estudos. Se por um lado na reta final das eleições atingiu o segundo mais longo período acima de 34%, por outro não foi capaz de se reeleger.
Diante de tais aspectos: o que será da governabilidade no terceiro mandato de Lula? As duas primeiras pesquisas de opinião pública dos institutos considerados na série mostram que: 1) a sociedade ainda está muito polarizada, o que é ruim para o presidente, mas; 2) há potencial para reversão do quadro negativo. O estudo Quaest de 13/02 tem o presidente com 40% de avaliações positivas, algo que Bolsonaro não atingiu nas 25 pesquisas dessa empresa desde 2021, com piso de 19% e teto de 36%. No Poderdata, diferença mais discreta: Lula tinha 43% de ótimo e bom em 31/1, com Bolsonaro, em 62 estudos desde 2020, com mínima de 22% e máxima de 42%. Já no Judiciário, o STF barrou as emendas do relator e entendeu que o pagamento de benefícios de programas sociais não deve ser contabilizado no teto de gastos. O primeiro tema é controverso, pois se Lula ganhou no discurso político contra a medida que chamou de corrupta, precisou destinar mais recursos orçamentários individuais a parlamentares, ultrapassando o volume das emendas impositivas que vigoram desde 2016 e endurecem as relações Legislativo-Executivo. E aqui se concentra grande parte da governabilidade: a base de Lula, nesse instante, parece frágil. Os partidos agregados nos ministérios não somam maioria constitucional e nada indica que serão fiéis a parte das pautas do Planalto.
Resultado inicial para o governo: 1) Lula tem potencial popular, mas a polarização ainda nos caracteriza e a pacificação pregada em discursos iniciais não se repete na sua postura; 2) o Judiciário parece atenuado, incluindo novas normas sobre decisões monocráticas e pedidos de vistas a partir de 2023, mas tem tudo para ser mantido como arena de conflitos a partir do questionamento da oposição em determinadas agendas e; 3) o Legislativo eleito estava mais afeito ao bolsonarismo, e contar com certos apoiamentos dependerá de questões que passam por irrigar os mandatos mais governistas, arrefecendo parte da direita que, nesse caso, não aprovará indiscriminadamente qualquer pauta. O desafio aqui será separar o Bolsonarismo de parte do Centrão, considerando o peso da opinião pública, assim como a capacidade de o ex-presidente, ainda nos EUA, coordenar seus seguidores que dão sinais de descentralização. A conferir.
Qual a proporção da crise Yanomami?
Ana Carolina Abreu, coordenadora de projetos da KAS Brasil
Luiz Gustavo Carlos, coordenador de projetos da KAS Brasil
Qual a proporção da crise Yanomami?
O lamentável episódio do povo Yanomami, revelado pelo Ministério da Saúde em janeiro deste ano, escancara um problema estrutural do Estado brasileiro quanto à efetivação do direito dos povos originários. Desde o período colonial, o modo de produção latifundiário foi definido como um dos sustentáculos do modelo econômico brasileiro, seja por influência monetária das grandes oligarquias, ou pelo projeto político destes grupos. Esse sistema se choca diretamente com a efetivação do direito dos povos originários a partir de uma importante encruzilhada: a questão da terra e o racismo. Entre boiadas e Marcos Temporais, é possível observar um impasse, onde historicamente prevalecem os interesses dos grupos mais fortes.
Entretanto, é de grande valia observar que o caso não se trata de uma questão isolada. Ele revela a multidimensionalidade (social, ambiental e econômica) de uma crise política engendrada já no mito de formação da sociedade brasileira, alocando ao fenômeno latifundiário a função de ser a principal engrenagem para o progresso, a solução única para o desenvolvimento econômico. Contudo, o último governo alçou a crise a paramares nunca antes vistos, já que prevalesceu a deterioração do Estado de Direito a partir de uma paulatina deslegitimação e esvaziamento dos órgãos fiscalizadores, como IBAMA, ICMBio e a FUNAI, principal órgão do Governo Federal responsável pela questão dos povos indígenas no país. O mesmo aconteceu com o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, que foi ocupado por pessoas despreparadas e sem experiência com a temática e, consequentemente, gerou o fortalecimento de grupos criminosos que propagam doenças e destruição para as florestas.
Além da evidente dimensão social do problema, a ambiental e econômica se relacionam diretamente quando analisados os resultados da destruição florestal, lar dos povos indígenas. O que foi devastado de Floresta Amazônica, que corresponde ao território de “duas Alemanhas”, na verdade foi convertida em áreas de pastagem com baixíssima produtividade e outros 23% foram abandonados. Por outro lado, enquanto 20% da floresta já foi desmatada nos últimos 40 anos, as Terras Indígenas juntas perderam somente 2,4% de suas florestas originais. Ademais, quando comparado o valor agregado dos produtos agroflorestais que conservam a floresta em pé e preservam os modos de vida tradicionais, observamos que, além do valor inestimável intrínseco da natureza, o econômico também é amplamente maior que os produtos advindos de arranjos produtivos baseados no desmatamento. Assim sendo, além do potencial de conservação da biodiversidade brasileira em Terras Indígenas, sua preservação significa subsistência digna para essa população e possibilidade de aumento de produtividade para o Brasil.
Ainda é predominante na visão da população brasileira que o desenvolvimento do país depende da expansão da agropecuária que desmata, contudo um modelo econômico e social mais promissor para o país seria o da bioeconomia. Assim como a bem-sucedida economia social de mercado alemã, que garante a liberdade econômica com responsabilidade social, a bioeconomia seria uma oportunidade de inserção em um mercado global multibilionário de produtos compatíveis com a floresta, que produziria a valorização da diversidade social e biológica brasileira. Como Konrad Adenauer defendia: “uma verdadeira democracia precisa respeitar os direitos inalienáveis e o valor de cada pessoa humana na vida pública, econômica e cultural”. Portanto, a mudança de mentalidade é necessária e assegurar a (sobre)vivência do povo Yanomami (que é tão brasileiro quanto o restante da população não-indígena) é, em última análise, também garantir o pleno funcionamento da democracia e ampliar a possibilidade de um desenvolvimento sustentável para o Brasil.
1 - O que levaria a ser necessário a garantia da soberania nacional através de uma intervenção militar. 3 SCANNAVINO, Caetano. “Amazônia: Desenvolvimento para quem?” em “Desenvolvimento Sustentável: Urgência e complexidade”, Fundação Konrad Adenauer - Rio de Janeiro.
5- Kas Brasil